Entrevista pela Mafalda Matos ao Professor José Manuel Moreira

Mafalda MatosO que o fez decidir que queria ser professor?

José Moreira: “Eu diria que ser professor, no meu caso, não foi propriamente dito uma decisão, talvez tenha sido uma casualidade ter seguido esse caminho. No liceu, sempre gostei de tentar (dentro das minhas possibilidades) ajudar os meus colegas face a algumas dificuldades que tinham em diversas áreas da aprendizagem. Nessa altura, reparei que, com exemplos interessantes e eficazes, fruto das minhas leituras complementares, conseguia bons resultados. Comecei a dar explicações, não só porque gostava, mas também porque aproveitava algum dinheiro extra. Fui-me apercebendo que até tinha aptidões para ensinar.

Entretanto, entrei na Faculdade, para o curso de Engenharia Eletrotécnica (que na altura estava um pouco em voga), na área das telecomunicações com o intuito de posteriormente entrar numa empresa. Contudo, após finalizado o primeiro ano, recebi um convite do Departamento de Física para ficar como assistente livre (figura que hoje já não existe e que consistia em prestar colaboração não remunerada ao Departamento). Apesar de tudo, tal alegrou-me, pois deu-me expectativas de um dia mais tarde seguir por um caminho de docência e investigação na Universidade. Fui muito bem acolhido, principalmente pelo professor João António Bessa Menezes e Sousa, que me integrou dentro do seu grupo de trabalho e investigação. Estávamos no início, tínhamos poucos recursos, poucos aparelhos de medida, mas muita vontade de começar a investigar e de obter publicações que conferissem projeção internacional. Tal percurso levou-me a perceber que a minha vocação estava, de facto, na docência e investigação.”

MM: Qual foi o projeto/desafio que mais gostou de fazer na sua carreira?

JM: “Como já disse anteriormente, eu estava numa fase de formação em que os recursos eram muito escassos, não havendo grande número de publicações. Entretanto, tive a oportunidade de por iniciativa do professor João Bessa, me deslocar a França, por um período de aproximadamente um mês. Fiz um estágio no grupo do professor Albert Fert (que foi posteriormente prémio Nobel da Física 2007). Na altura eu estava interessado em estudar uma propriedade muito importante na Física, denominada efeito Hall e conhecer a sua correlação com o magnetismo exótico, que existe em ligas de terras raras, cujas propriedades variam acentuadamente com a percentagem de terras raras na liga. Tive ajuda de um estudante de doutoramento jugoslavo, Amir Hamzič, que estava no grupo do professor Fert.

Regressei ao Porto com a intenção de pôr em prática, nos nossos laboratórios, tudo o que tinha aprendido em França. Foi sem dúvida um desafio extraordinário! Claro está que não foi nada fácil, havia dias muitos frustrantes, mas também dias de muita alegria, quando finalmente conseguíamos ultrapassar as dificuldades – faço notar que na altura o uso de computação era incipiente, era tudo feito à base de colheita manual de dados e de gráficos em papel milimétrico. Foi sem dúvida um dos meus maiores desafios. Esse equipamento serviu posteriormente para a exploração igualmente da propriedade física denominada magnetorresistência. Tive igualmente colaborações muito interessantes com a Inglaterra, a Bélgica, a Espanha, entre outros países.”

MM: Mencionou que o departamento estava no início da investigação, pode elaborar?

JM: “Havia já trabalhos de relaxação térmica, na resistividade de materiais à base de cobre e prata. Contudo, a precisão das medidas da tensão elétrica que surgia nos terminais das amostras ainda não era a ideal. Era necessário melhorá-la, para procurar obter as derivadas da resistividade em ordem à temperatura e ao tempo resultantes dessas relaxações térmicas e que são essenciais para o estudo detalhado de parâmetros físicos muito relevantes na análise crítica dessas propriedades.

Porém, muito rapidamente, conseguimos ir comprando aparelhos que iam até à centésima do microvolt, o que não chegava ainda para o efeito Hall, que necessitava de melhor resolução em tensão (nanovolt). Então comecei a utilizar os chamados Phase Sensitive Detectors (PSD – detetores sensíveis à fase que tinham sido lançados no mercado), que eram dispositivos que recolhiam sinais em fase com a entrada e que, portanto, permitiam eliminar muitos dos problemas de ruído que surgiam nas medidas.

Nessa época, o comportamento do efeito Hall em materiais magnéticos ainda era muito mal interpretado fisicamente, e foi exatamente o professor Fert que conseguiu dar uma explicação completa de como se fazia a extração das componentes ordinária e extraordinária desse efeito. Porém, não foi só na teoria que foi feito um grande esforço. O avanço tecnológico referido anteriormente resultou numa contribuição minha muito importante: montar o esperado dispositivo que permitia fazer boas medidas em função da temperatura e em função do campo magnético aplicado com a resolução necessária (nanovolt, como já disse anteriormente). Tínhamos um magneto permanente que conseguia atingir, em varrimento, até aproximadamente 1 T.

Posteriormente, houve nesta área um outro grande desafio no Departamento: a implementação do sistema de campos magnéticos pulsados, que permitiu que se obtivessem campos da ordem de 27 T, algo já bastante significativo a nível mundial. Pulsados, significa que têm uma duração muito pequena em tempo (no nosso caso na ordem de 1s). A implementação do sistema no Departamento foi conseguida exatamente trazendo um técnico de Toulouse altamente especializado. Só para dar uma ideia, os recordes de campos magnéticos pulsados em França, (Toulouse – melhor centro da Europa de campos pulsados), é da ordem dos 60 T. Trata-se de uma unidade muito grande e comparticipada monetariamente por vários países. Há ali, digamos, uma colaboração grande, por ser quase impossível um só país conseguir ter dinheiro para administrar toda a estrutura. Depois, cada um dos países que é filiado pode levar investigadores, desde que o trabalho por eles proposto seja previamente aprovado.

Eu cheguei a beneficiar de várias deslocações a Toulouse ao abrigo dessas colaborações.

Existem alguns campos magnéticos destrutivos que chegam aos 500 T (normalmente em laboratórios japoneses). Em cada, experiência todo o equipamento, bobinas e amostras, são destruídas sendo necessário proteger todo o ambiente em volta dessas explosões. Note-se que as forças envolvidas nas bobinas crescem com o quadrado do valor do campo magnético. Assim, para passar de 1 para 500 T a força é 250.000 vezes maior. De 25 para 500 T o quociente das forças envolvidas é 400. Este é um grande problema no projeto das bobinas criadoras do campo. Por outro lado, o arrefecimento das bobinas após cada tiro é essencial para baixar a temperatura destas, resultante do efeito Joule gerado, e permitir novo tiro. Tal só é possível se o sistema estiver rodeado de azoto ou hélio líquido, em regime de utilização permanente.

Posteriormente, muitos dos nossos alunos de doutoramento e investigadores tiveram acesso a deslocações, mais ou menos duradouras, a laboratórios de nível internacional onde conseguiram uma aprendizagem cada vez mais exigente.”

MM: Qual é a origem dos nomes dos seus cães?

JM: “A origem dos nomes dos meus cães é algo de muito engraçado, porque todos eles têm dois nomes, o próprio e o apelido, porque eu sempre aprendi que, como dizia o Jô Soares (comediante brasileiro): O que é um paturso? É o filho de um pato e de um urso. Então, eu decidi por dois nomes, pois geralmente associo o nome do cão a uma coisa de que gosto, ou que me marcou de alguma maneira, ou que está ligada à história, ou ao cinema, ou à música…

É possível haver algumas críticas aos nomes que eu escolhi, e eu reconheço isso, pois em certos casos as personagens envolvidas são excêntricas. Então, vamos lá ver. Eu tenho um macho small (tipo S), que é o mais velho (de 16 anos), e uma cadela, medium (tipo M), com cerca de 5 anos. Atualmente, tenho também um macho large (tipo L), que tem só 6 meses e é um espectáculo. Ele é um lobo autêntico, tem olhos pretos e é todo branquinho. Eu não sei que raça é aquela, nem ninguém sabe, nem mesmo o veterinário que trata dele. Agora estou à procura de ter um very large (tipo XXL), um Mastim do Tibete vermelho que é o triplo ou o quadruplo do São Bernardo.

O mais velho é o Billy Afonso. Billy porque eu sempre gostei muito do Billy the Kid, um herói da banda desenhada que em alguns aspetos era um pouco vilão, mas que tinha também um bom coração. Eu achei que o Billy era um bocado assim, um pouco vilão, pois às vezes era resmungão, mas muito meigo. Ele é um pequinês falso, castanho dourado muito belo. Afonso porque eu gosto muito dos Afonsos – foram reis de Portugal que desenvolveram muito o país e criaram as ordens afonsinas. Portanto, serve este nome para lembrar a história de Portugal até ao rei D. Afonso V que segundo a História prestaram bons serviços ao país.

Agora falemos da menina. Como eu gosto muito de meninas a cantar, eu decidi dar-lhe o nome de Cuca Maria. Em Portugal, existem muitas Marias, a minha mãe era Maria, a minha irmã é Maria, uma das minhas filhas é Maria, a minha mulher é Maria, e então dei-lhe o nome de Maria. Escolhi Cuca, porque eu gosto da Cuca Roseta, que é uma fadista que tem categoria. Não é o estilo de música de que gosto mais, mas é pelo menos um estilo de música que é único no mundo, e, portanto, é muito apreciado e é emblemático para Portugal.

Ao mais novo pus o nome de dois cantores, um deles de que gosto muito, é o Prince, embora, como costumo dizer, alguns aspetos da sua vida não sejam os mais aconselháveis – mas enfim, são modos de vida. O segundo nome é Marley, que como sabem tinha uma ideologia e um modo de viver um pouco fora da sociedade tradicional, e uma filosofia que eu acho particularmente interessante. Além disso, eu gosto muito da música do Bob Marley (rei do Reggae), e, portanto, decidi chamar o mais novo de Prince Marley.

A música, para mim, contém todas as facetas possíveis de encontrar na sociedade, na família, enfim, no mundo.”

MM: Preferia nunca mais ver/jogar bilhar ou nunca mais conseguir um selo novo?

JM: “Bom, trata-se para mim de um grande problema a que com dificuldade tentarei responder. Esses são os meus dois grandes hobbies e eu tentarei explicá-los em detalhe.

Relativamente aos selos, coleciono-os desde os quatro anos de idade. Recordo-me perfeitamente, o dia em que o meu pai chegou a casa e me disse: “tenho um amigo meu no emprego que é um bom colecionador de selos de Portugal e ele sabe (porque lhe contei) que tu gostas de tudo o que são coleções”. Na realidade, colecionava muitos cromos de animais, rebuçados que tinham embalagens com desenhos variados, do Ben-Hur, de filmes, de vegetais, até mesmo pacotes de açúcar. Eu comprava as cadernetas correspondentes e colava os exemplares que tinha. Colecionei igualmente minerais, folhas e raízes de plantas, fósseis que colhia em terrenos onde sabia que existiam…

Portanto, como já disse, sempre gostei muito de colecionar e então o meu pai sugeriu-me ir a casa do amigo para ele me mostrar a coleção que tinha. Todos os selos estavam devidamente guardados dentro de envelopezinhos transparentes.  Permitiu-me que eu escolhesse o que quisesse dentro dos repetidos que tinha. Trouxe algumas centenas e a partir daí criei o bichinho maléfico da filatelia. Nunca mais deixei este vício. Sempre que tinha uma prenda monetária de anos ou qualquer trabalho realizado, e me deslocava ao Porto ou a Lisboa, comprava as minhas coleçõezinhas. Desenvolvi a coleção e comecei a aprender. Talvez o único assunto de que sei alguma coisa em profundidade [risos] é a filatelia. Agora com o desenvolvimento dos contactos e compras via internet e intercâmbios, a minha coleção melhorou muito nos últimos anos. Portanto neste momento tenho uma bonita coleção e ficaria muito triste se não conseguisse arranjar o tal selo que eu ainda não tenho.

Os selos contêm toda a quantidade de informação das culturas dos povos e é possível para um expert identificá-los mesmo não olhando para o país de origem. Por exemplo, os selos nórdicos são todos ou quase todos monocromáticos. Os selos de África têm quase todos cores extremamente berrantes, como acontece aliás nas suas bandeiras. Os do Médio Oriente são de um tipo completamente diferente, porque está ali a cultura do povo. É por isso que eu gosto muito de filatelia, porque aprendo os mais variados temas. Passa-se em revista desde a religião, aos costumes, às comemorações importantes, aos congressos, às invenções, aos homens célebres, etc. Tudo está lá, tudo o que for relevante aparece num selo. Isto é uma primeira coisa, de que gosto imenso.

Depois existe uma outra que é o desporto. Sou um grande apreciador de desporto porque desde muito novo acompanhei o meu pai que era diretor desportivo do CAT (Centro de Alegria no Trabalho) da APDL (Administração dos Portos de Leixões). Tinha todas as modalidades, desde futebol a andebol, basquetebol, atletismo e corta-mato. Acompanhava o meu pai para todos os lados, logo de manhã cedinho, para ir ver essas atividades desportivas. Voleibol, por exemplo, cheguei a jogar alguns campeonatos de praia. Passava o meu verão a jogar na praia de Leça e sempre que podia fazia um desafiozinho de futebol. Gostei muito de futebol. Hoje em dia acho que o futebol está muito conspurcado e que socialmente não é aconselhável como era. Recordo-me que o meu pai convidava os jogadores e me levava a mim para, como prémio de vitória num jogo, comer um bife com batatas fritas, azeitonas e uma caneca de vinho, no restaurante Castanheira em Matosinhos. Ou seja, na realidade o que se verificava era que havia mais amor à camisola e menos amor ao dinheiro. Hoje em dia, o que acontece é exatamente o contrário.

Porque é que eu escolhi o bilhar como desporto preferido? Eu escolhi o bilhar porque exige que se pense o modo como se quer proceder ao longo do jogo. Joguei também xadrez, mas nunca tive grande aptidão porque sou muito defensivo, não tenho intuição para atacar. Gosto imenso do bilhar porque aquilo é geometria, é dominar as bolas, ou seja, é possível, dado que as colisões não são perfeitamente elásticas e existem atritos e efeitos que se podem dar na bola, fazer uma variedade muito grande de coisas maravilhosas. Em particular há o bilhar artístico (tivemos em Portugal bons executantes a nível mundial). Comecei a treinar, a jogar, rapidamente subi de categorias, o que me fascinava. Contudo, cheguei a um dado ponto e tive de desistir, exatamente porque a investigação na universidade e a categoria a que eu tinha chegado (em termos de presença em campeonatos) não me permitia conciliar o meu trabalho e as minhas aulas com o treino que era requerido. A partir de uma dada altura, para se ser um grande jogador, tem de se ser praticamente profissional e, portanto, eu tive de optar. O mesmo se passou no voleibol.

Para ser um bom jogador de bilhar é preciso ter pelo menos 8 horas de treino por dia. Acresce que os campeonatos são normalmente à noite e extremamente demorados. Há muito o aspeto defensivo (muitas vezes os jogos terminam à uma ou duas da madrugada) o que impede no dia seguinte que se possa trabalhar cedo, com decência. Ainda de longe a longe, se me pedirem para jogar uma partida, eu jogo. Ainda agora tive o meu neto que me pediu para jogar com ele e eu disse-lhe “quando chegar ao Porto eu vou jogar contigo”. Em suma, o bilhar exige muita presença mental, muita reação e aceitação das adversidades. É um jogo que é absolutamente honesto porque não há praticamente possibilidade de interferência do árbitro; se houver condições e se formos melhores, à priori, ganhamos e não interferimos com ninguém. Nota-se que as pessoas que jogam bilhar a nível de top são pessoas muito sérias, muito honestas, e são eles próprios capazes de apontar “eu cometi uma falta” quando o árbitro até nem a viu. Ainda há alguns dias vi isso na TV. O Mark Williams, que é do top 10 do ranking mundial, a dizer ao árbitro: “isto foi falta porque eu toquei com o braço numa bola”. Claro está que o árbitro pode cometer um pequeno erro, mas nunca é para prejudicar definitivamente um jogador porque isso dava demasiado nas vistas.”

MM: O que dizem os olhos dos seus cães?

JM: “Na verdade, este mundo é fantástico, eu vejo isso nos meus cães. O respeito uns pelos outros é uma coisa brutal e o cão mais novo, que é o maior de todos, respeita estritamente o mais velho, ou seja, basta o Billy ladrar um bocadinho que, o maior que é o triplo ou quadruplo do seu tamanho, pisga-se logo e vai-se agachar cheio de medo porque sabe que ele está há muito mais tempo em casa e que é ele que manda. Por outro lado, os animais têm uma vantagem: na realidade não exigem nada em troca, talvez só um bocadinho de comida. Eu posso chamá-los às quatro da madrugada e eles estão disponíveis para ir sair, estar ao meu lado ou qualquer coisa. Muitas pessoas, se nós as chamarmos à meia noite dizem “trata de ti, não me venhas chatear que eu estou a descansar”. O animal é bastante mais compreensível nesse aspeto, ou pelo menos aparenta ser; não resmungando, não dizendo “ah, lá vens tu incomodar-me outra vez”. Pelo menos os meus cães não incomodam nada a mim, antes pelo contrário, são uma grande companhia.

Para terminar esta amena conversa, chamo a atenção para um programa que existe na Antena 1 que se chama “O Mundo Fantástico”. Na realidade este mundo é qualquer coisa de fantástico. Se nós olharmos para variadas nuances, que todos os dias encontramos, para as pessoas originais, para uma Natureza que é uma coisa grandiosa, podemos dizer que há na realidade um mundo fantástico e que esse mundo fantástico pode ser melhorado e ser devidamente aproveitado por nós.

Há um outro programa da Antena 1 que se chama “Move-te por valores”. Está integrado na programação de desporto no Domingo à tarde e que dá exemplos interessantíssimos de que muitas vezes, mesmo com prejuízo enorme para o próprio, vale sempre a pena fazer algo de positivo por outras pessoas que estão em dificuldades. Vários atletas já perderam medalhas em Olimpíadas e corridas por essa razão. Essas pessoas têm um grande caráter e não veem apenas o objetivo dos louros que poderiam obter, mas para ele o gesto que tomam é primordial. Devemo-nos mover por valores, mesmo sabendo que nos podemos estar a prejudicar. A nossa consciência fica, posteriormente, tranquila.”