Entrevista por Patrícia Vieira, Mafalda Matos e Martim Carvalho ao Professor João Viana Lopes

Patrícia Vieira (PV): O que pode dizer do seu percurso académico e da sua evolução na área da Física?

João Viana Lopes (JVL): Basicamente, o meu percurso foi todo aqui nesta casa. Fiz aqui a licenciatura, depois o mestrado e o doutoramento. A seguir, estive em Lisboa e na Alemanha. Voltei e fui para a FEUP e agora estou cá de novo. Portanto, são muitos anos aqui na casa.

PV: E o que pode dizer das suas experiências aqui na Faculdade de Ciências e em volta do seu percurso?

JVL: Na altura, o curso era muito diferente do que é hoje, incluindo o corpo docente. Eu fiz o curso há muitos anos, vinte e tal, portanto a maioria das pessoas que tive como professores já se reformou. Era um curso muito menos focado na investigação. Eu lembro-me, mesmo no final da década de 90, que se fazia uma festa quando se publicava numa revista melhor. Hoje em dia, digamos que o mundo mudou muito e que a maioria das pessoas está envolvida em múltiplos projetos, viaja imenso…. É difícil fazer um paralelo desse tempo com o de agora. Por exemplo, no que diz respeito aos estudantes de pós-graduação, nós hoje temos os mestrados a funcionar. Não sei exatamente quantos alunos de doutoramento temos, mas são largas dezenas. Para vocês terem uma ideia, o mestrado que eu fiz, que foi em Física do Estado Sólido, não abria há muitos anos e naquele ano só o fez porque conseguiu um núcleo de quatro pessoas. E que eu saiba, foi a última vez que abriu. O departamento de lá para cá mudou muito, evoluiu, e a física em Portugal também mudou bastante.

Portanto, o meu percurso foi esse. Na altura, o que acontecia era que nem sempre havia bolsas. No ano em que  terminei a licenciatura não as havia para mestrados. Portanto, comecei a trabalhar. Fiz o meu enquanto dava aulas. Nesse sentido, entrei no mundo laboral muito mais cedo do que o que hoje em dia é habitual, e tive que conciliar as duas coisas. Trabalhava numa escola que tinha o ensino técnico profissional, onde dava aulas de Física aos 11º e 12º anos. Depois, vinha para aqui e ficava até tarde a fazer os trabalhos associados ao meu curso. Quase sempre tive esse trajeto, que foi a fazer investigação e pós-graduação e, em simultâneo, a dar aulas. Portanto, foi mais o tempo em que lecionei do aquele em que não, ao longo destes anos todos, desde ‘96 até agora.

Mafalda Matos (MM): Foi aí que desenvolveu o gosto pelo ensino?

JVL: Sim, desde o primeiro momento. Eu fui absolutamente privilegiado. Em vários momentos da vida tive oportunidade de fazer coisas que são raras. Lembro-me que quando terminei a licenciatura e fui dar aulas tinha 22 anos. Portanto, era bastante novo para o padrão de hoje, mas o mais engraçado é que tinha alunos com 21. Era uma escola técnico-profissional e as circunstâncias eram difíceis. As pessoas estavam a fazer o diploma e a maioria delas só queria ir trabalhar, mas não o conseguia porque chumbava nos exames de Física, Matemática e Geometria Descritiva. Creio que na altura eram os três grandes blocos de reprovação. Deste modo, depois andavam vários anos a repeti-los e – por muito que os professores dessem até notas altas durante o ano – chegavam ao exame e chumbavam. Era o suficiente para não terem o diploma.

Na altura, quando eu fui dar aulas para um colégio em Gaia, tive a oportunidade incrível de ouvir os diretores dizerem-me: «Faz o que quiseres com eles. Nós não queremos saber desde que eles se vão embora com o diploma». Portanto, eu pude fazer exatamente o que me apetecia durante o ano todo, sendo que era suposto que, no final, eles conseguissem fechar aquele percurso da vida, ou seja, tirar uma nota no exame nacional que lhes permitisse ter o diploma. Por isso, quase nunca tive interferências pedagógicas. Se eu hoje começasse a contar as coisas que fazia aos alunos provavelmente moviam-me um processo – nos tempos que correm em que tantas coisas parecem mal e existe tanto escrutínio  –, mas funcionavam.

PV: Mencionou nas aulas que foi a África, tendo participado em vários projetos. O que é que pode dizer dessa sua experiência filantrópica?

JVL: Eu não lhe chamaria bem filantrópica porque, algumas das vezes que fui, cheguei a ser pago e muito bem.  Mas deixem-me só contextualizar: eu nasci em África, em Moçambique. Vim muito pequenino para casa, mas digamos que na minha educação de criança e em alguns hábitos familiares sempre esteve presente essa memória. A lembrança dos meus pais, os hábitos, a frequência com que íamos à praia e com que se comia marisco (por exemplo, que era uma coisa muito habitual em Moçambique), essas coisas sempre estiveram presentes. A minha mãe fazia caril e a maioria das famílias portuguesas na altura não tinham esse hábito. Ou seja, existe uma presença que não é física nem ligada ao estar lá, mas sim cultural. E não só. Durante a minha adolescência, lembro-me de haver negros no nosso contacto familiar, coisa rara. Eu sou de Viana do Castelo, havia muito poucas pessoas de cor na altura, mas os meus pais davam-se com algumas, que frequentavam a nossa casa e eram nossos amigos. Alguns deles até são quase família, de uma relação tão forte que há. Por isso, não é que tenha de repente acordado, num certo dia, a pensar «Ah, vou para África.»; aliás, eu detesto completamente o discurso dos “pobrezinhos”, portanto não é muito por aí.

Muito antes de ir – a primeira vez que fui à Angola foi em 2009 – comecei a construir ideias sobre a importância da educação nos PALOP e da importância da Física estar presente desde o final dos anos 90. Lembro-me de alguns eventos e de algumas discussões que tive com pessoas mais ligadas à educação. Já nesse tempo eu tinha vontade de fazer mudanças no modo como divulgávamos a Física e a Ciência. Com esta motivação, criei, juntamente com o professor Miguel Costa, a Escola de Verão de Física aqui, em 2005. Pouco tempo depois, passados um ou dois anos – como tinha amigos que estavam em trabalho de voluntariado em África – houve a oportunidade de trazer também uma aluna de São Tomé. Eu agarrei essa oportunidade, com todas as dificuldades que isso implicava, inclusive no orçamento da escola. Lembro-me de me ter envolvido muito para encontrar um patrocinador e conseguir trazer a estudante. Fiquei muito feliz quando o consegui. A partir daí, a Escola de Verão de Física começou regularmente a trazer alunos dos PALOP, com tudo o que isso implicava em custos e contactos, pois estar a contactar à distância não era fácil.

Em 2009, retomei a ligação a Africa associado à escola onde tinha trabalhado quando tinha terminado a minha licenciatura. Eles tinham grandes ligações com Angola e eu tive a sorte (há coisas que funcionam mesmo por sorte) de ter esse privilégio de lá ir, numas condições francamente boas: não só me estavam a pagar – o que era importante, mas não o principal – como tive também a oportunidade, que eu acho que dificilmente se poderá repetir, de ter recursos bastante bons. Basicamente, o que quer que fosse preciso aparecia, quer do ponto de vista de custos, de gastos, de ter um motorista, um jipe, logística em geral. Levava comigo pelo país fora uma mala cheia de ferramentas caso fosse preciso reparar coisas, algum equipamento de substituição. Tive de fazer uma previsão do que poderia precisar no terreno. Portanto, percorri 10.000 km de escola em escola. Na altura, havia um programa nacional de reequipamento de escolas de ensino profissional e estavam envolvidos materiais e laboratórios de Física. Geralmente eu abria os laboratórios, fazia o seu inventário e dava formação aos professores locais – às vezes, aos professores expatriados, aos professores cubanos ou brasileiros que lá estavam. O sistema deles não é exatamente como o nosso, há muitos parceiros estrangeiros e muita troca de docentes, é um bocadinho mais confuso. Dava-lhes uma formação com aquilo que as instalações tinham, partíamos do que os professores sabiam e começávamos a trabalhar. Era uma coisa muito intensa de 20 e tal horas, feita em 3 dias, mas acho que funcionou. Foi suficiente para os laboratórios arrancarem e para mim foi uma ótima experiência.

De lá para cá, voltei mais uma vez a participar nesse programa e, depois, aqui com a faculdade, eu e o professor Lopes dos Santos fomos em 2015 à José Eduardo dos Santos fazer uma ação com alunos da universidade. Envolvia coisas mais próximas ao que eu vos ensino: uso dos computadores e do Jupyter para aprender Física e Matemática.

Fora isso, temos submetido projetos. Apesar de ser extremamente difícil, gostaríamos de expandir esta colaboração com os PALOP, com a promoção nas ciências exatas lá, numa ligação mais frequente. Mas isso custa sempre tudo muito dinheiro e não é propriamente fácil arranjá-lo. Formam-se iniciativas, mas nem sempre se consegue financiamento e elas vão ficando na prateleira. Agora mesmo, estamos a escrever um projeto.

PV: Qual foi o projeto mais desafiante da sua carreira?

JVL: Não consigo responder a tal, pois eu meto-me nas coisas um pouco por ímpeto e às vezes sou conhecido por não avaliar os riscos. Um bom exemplo disso é que, estando habituado a cozinhar só para mim ou para outra pessoa, um dia decidi cozinhar para 100 e depois passei a fazer isso com bastante frequência, tipo 6 a 7 vezes por ano. Aconteceu assim:

Eu estava ligado, apesar de ser agnóstico, a um centro da Companhia de Jesus aqui no Porto onde acabei por estar relacionado com uma série de projetos e ao espaço em si, que é muito aberto a todas as pessoas com todas a crenças religiosas. A determinada altura, tive uma conversa com o diretor, o Padre Vasco Pinto Magalhães, no seguimento de uns cursos ao fim de semana. Afinal de contas, sempre manifestei uma certa queda para as dinâmicas de grupo – tal como já puderam ver a partir daquilo que faço com vocês, alunos, com os TPC’s no fim de semana. Resumindo, eu achava que era um desperdício de oportunidade virem tantas pessoas de tantos sítios fazerem as sessões e depois na hora de almoço irem cada uma para o seu lado, não se conhecendo ou trocando impressões. Portanto, propus ao Padre Vasco a ideia de se fazer o almoço lá, no espaço do CREU-IL, ao que ele evidenciou a dificuldade e questionou quem seria a pessoa a chegar-se à frente para tal. Eu, que gosto muito de cozinhar, prontamente disse: «ah, eu posso fazer!». Fui completamente irresponsável. Assim foi, cobrávamos 300 escudos a cada pessoa (1 euro e meio) e servíamos o almoço. Fiquei durante alguns anos, e com bastante frequência, como cozinheiro oficial. Pronto, é daquelas coisas que basta as pessoas se mentalizarem, que conseguem fazer.

Outro projeto do género, grande, de que vos possa falar, foi o que comecei e depois desenvolvi com ajuda do Simão Meneses, em que desenvolvemos uma aplicação open source. Se foi difícil? Não digo que foi, mas com muito trabalho consegue-se quase tudo. É das tais coisas, também a viagem muito romântica em África me deixou as costas numa lástima, pois como podem imaginar 10000 km de jipe em terra picada é muito duro, mas…faz parte.

PV: Que “dicas” pode dar aos alunos do nosso curso, Engenharia Física e Física, que pretendam seguir a área mais computacional?

JVL: Eu tenho muita dificuldade, aliás, isso é uma coisa que me faz pensar muito, em perceber os problemas que os alunos apresentam na área dos computadores.

Eu tive uma experiência muito precoce com a programação, talvez aos 11 anos ainda nuns computadores em BASIC. Na altura não tinha um computador, pelo que era uma casa pública, no Instituto Português da Juventude. Como não pude mais praticar, depois ficou adormecido durante muitos anos até entrar na universidade e, no 3º ano, voltar a ter experiência. Contudo, eu acho que esse contacto em tenra idade fez com que, de facto, eu não estranhasse o ato de dar ordens ao computador. Achei sempre muito natural e, portanto, ainda hoje me surpreendo um bocadinho com os estudantes, com a sensação de que têm a passar alguma barreira.

Que conselho posso dar? Ao longo destes anos que eu tenho ensinado nessa área – e já a ensinei em vários contextos, não só aqui – várias vezes observei que as pessoas resistem muito e dizem que têm muita dificuldade, que não percebem, que isto e que aquilo. Reclamam muito. Curiosamente, passando depois 2 ou 3 anos em que, por motivos profissionais precisam mesmo, de repente já fazem, já acontecem, e elas próprias dizem «não percebo porque é que tinha aquelas dificuldades, porque isto até é fácil».

Portanto, se as pessoas sentem que têm dificuldades, o meu conselho é que procurem os docentes. Não é só na computação, é em todas as áreas. Procurem os professores, frequentem os horários de atendimento e gastem tempo efetivo a trabalhar.

A programação é uma linguagem e, como todas as outras, tem de ser treinada. O motivo pelo qual eu adotei o Jupyter para usar aqui nas minhas aulas é por ele ser iminentemente interativo e, portanto, permitir que uma pessoa que não tem a certeza de uma sintaxe, possa, numa célula mais abaixo, experimentá-la, fazer um ciclo em que imprime os índices para ter a certeza de onde é que começa o quê, onde é que termina e como é que é. Essa abordagem quase experimental de lidar com um computador é extremamente eficiente e, portanto, as pessoas tendem a ganhar mais fluência. Porém, têm que fazer esse investimento. Enquanto não fizerem, não vão passar a barreira de energia e, portanto, vão ter sempre a dificuldade em dar o passo em frente. E o que é que aconteceu nos casos que eu vos referi há pouco? É que por motivos profissionais tiveram que gastar o tempo, porque tiveram mesmo que fazer e, de repente, depois de gastarem o tempo, as coisas começaram a fazer mais sentido e as dificuldades a serem ultrapassadas.

Logo, eu não acho que para o nível zero da programação, como dominar a linguagem ou fazer um conjunto de instruções e algoritmos standard, seja preciso mais do que isso, muito honestamente.

Agora, há outro nível, que é o nível de uma pessoa que quer fazer carreira ligada à programação, que quer resolver problemas complicados usando a programação, quer eventualmente fazer high-performance computing ou estar na linha da frente da eficiência, para obter os resultados mais precisos, os maiores tamanhos, seja o que for.

Isso acontece muitas vezes aqui na Física, e eu aí, aquilo que digo é que as pessoas têm de gostar realmente do computador, perceber o que é que ele é – uma máquina, como é que se lida com ele, como é que ele faz as contas e como é que se usa o que se sabe sobre ele de maneira a extrair o máximo de eficiência e o máximo de performance. Idealmente, eu tenho que olhar para a conta que faço no computador, exatamente como a conta que faço analiticamente, e perceber que é a mesma coisa, são duas faces da mesma moeda.

MM: O professor disse que entrou em contacto com a programação desde cedo. Como é que, posteriormente, se envolveu mais?

JVL: Como quase tudo que acontece na nossa vida, foi completamente aleatório ou muito próximo disso. Depois de terminar a licenciatura, eu ia trabalhar com o Professor José Fernando Mendes, mas veio o Professor Yuri, na altura com uma bolsa temporária de cientista convidado. O Professor Bessa disse-me que seria interessante que, enquanto o Professor Yuri Pogorelov estivesse cá, houvesse um estudante que trabalhasse com ele, e que como era por um tempo curto seria uma boa oportunidade para mim. Na altura, pareceu-me razoável e acabei por começar a trabalhar com o Professor Yuri. Ele não fazia praticamente nenhum trabalho numérico, mas queria fazer. Então, como eu sabia um bocadinho, por ter tido a disciplina, naturalmente podia começar a fazer os programas.

O que me empurrou definitivamente para a computação foi o facto de ele não perceber muito assunto e por isso deu-me um problema extremamente difícil. Portanto, eu desde essa primeira experiência fui empurrado para cálculos numéricos que demoravam dias e punham dezenas de computadores a trabalhar. Então, comecei desde muito cedo a encontrar estratégias para conseguir fazer contas porque não tinha os recursos necessários para as fazer. Isso obrigava-me a ter a certeza de que os algoritmos que usava eram os mais rápidos que eram possíveis de utilizar para aquele problema, por um lado, e, por outro, a gerir recursos.

Nós na altura não tínhamos um cluster e eu arranjei um estratagema legal para ser a pessoa que na faculdade tinha mais RAM e CPU. Isso eu acho que é uma coisa muito interessante que a mim me fascina: as pessoas viviam num paradigma em que se compravam máquinas que custavam 50.000 €, assim como as SGIs ou as HP em Unix proprietários. Nós tínhamos três no nosso departamento. Então, todas as pessoas que faziam cálculo numérico usavam aquelas máquinas. Só que a tecnologia tinha evoluído muito rapidamente naqueles anos e, na prática, os i486 da Intel que nós tínhamos na sala de alunos lá em baixo eram tão rápidos quanto os outros. Só que ninguém sabia. As pessoas pura e simplesmente não se apercebiam e estavam ainda focadas naquelas máquinas muito caras que estavam ali há já quatro ou cinco anos.

Eu lembro-me de que havia na Faculdade de Ciências três ou quatro salas, cada uma teria cerca de trinta computadores e, portanto, vocês vêem que eu tinha imensas máquinas. Assim, rapidamente comecei a aprender a programar em paralelo, a lançar processos remotamente nas máquinas e a fazer scripts de shell para gerir toda essa distribuição de trabalho que depois gerava ficheiros que tinham de ser processados. Havia todo um trabalho, não só era preciso escrever a conta, era também necessário depois partir tudo em bocadinhos, passando a ser um trabalho mais de Engenharia. Comecei a envolver-me nisso muito cedo e naturalmente a necessidade obriga-nos a aprender rapidamente, a gerir sistemas operativos. Muito pouco tempo depois, eu já era capaz de ser gestor de sistema: era eu que mantinha aqui no Centro de Física a gestão e a instalação das máquinas, a configuração quer das redes, das áreas partilhadas de disco, etc… A partir disso, fiz sites, bases de dados, construí Clusters com os respectivos sistemas de queues, entre outros. Portanto, houve um percurso tecnológico do ponto de vista do domínio de uma série de competências que vai muito para além da Física, mas começou por acaso, com uma sugestão mal programada de um professor a um aluno, de certa maneira. Mas a vida é assim.

Martim Carvalho (MC): O que dizem os seus olhos?

JVL: Hoje dizem imenso sono – dormi só quatro horas.

MC: Ao longo dos anos, não dizem sono, pois não?

JVL: Não, apesar de eu por norma dormir relativamente pouco. Acho que normalmente dizem curiosidade, aliás, eu há pouco, quando falei de África, não mencionei uma coisa que para mim é relativamente importante, que é o estar extremamente atento às pessoas e à sociedade, a tudo o que me rodeia. Por norma, essa curiosidade faz com que eu goste muito de tudo, ou seja, eu nunca estive num sítio em que eu dissesse «eu não gosto nada deste sítio nem destas pessoas» porque eu acho sempre piada a alguma coisa. Há sempre algo que me faz gostar. Nuns sítios é uma coisa, noutros é outra, e isso tem a ver com a enorme predisposição para se estar curioso, olhar e apreciar a diferença.

PV: Ver o lado positivo…

JVL: Eu não diria ver o lado positivo, é mais básico do que isso. É curiosidade de perceber porque é que é assim e por que é diferente noutro lado, e o que é que justifica isto e aquilo. Aliás, acho que as pessoas que lidam comigo na base diária são permanentemente massacradas com uma constante formulação de teorias para tentar explicar questões sociais, ou porque é que somos assim ou assado, relações… E tem a ver com isso, tem a ver com a curiosidade permanente de questionar. Isso é muito importante. Quando eu olho, por exemplo, para Angola, que é o país que eu conheço melhor, ou para a Alemanha, que também é outro sítio onde vivi, vejo a natureza humana presente, ou seja, não acho que seja tão diferente estar em África ou na Alemanha, são faces da mesma moeda, diferentes estados, diferentes contextos históricos, mas encontro uma união nisso tudo. Ao mesmo tempo, as diferenças cativam-nos. Portanto, é um bocadinho essa paixão de entender. É um vício.

MC: Acho que é algo muito presente nos físicos, somos todos muito curiosos por perceber as coisas.

PV: A minha mãe diz que eu passei uma fase horrível dos “porquês”. Era muito curiosa, mas foi uma fase enorme.

MC: Que ainda não passou.

JVL: Aliás, eu até gosto de pensar dessa maneira com a nossa profissão. Para a maioria das pessoas, muitos dos problemas que nos ocupam a cabeça, às vezes meses, são irrelevantes, e, portanto, de certa maneira é quase como se fosse uma doença. Somos assim, queremos tentar perceber. Eventualmente não tem relevância nenhuma, mas enquanto não percebermos, não descansamos, e acho que isso é uma característica que pode estar presente em alguns perfis aqui em ciências.