Módulo sobre «spinors»

Cartaz de instruções

O que fazer

Eleve a esfera central na vertical e retire a vara vertical que parte da base. Estará então em condições de rodar a esfera à vontade. Faça algumas rotações completas da esfera e depois coloque no sítio a vara que tirou no início. Os únicos movimentos possíveis da esfera nesta altura são movimentos na vertical. Por outro lado, neste momento os fios que partem da esfera encontram-se entrelaçados. Tente desenlaçá-los, passando-os por cima ou por baixo da esfera.

O que deverá acontecer

Se tiver feito um número ímpar de rotações da esfera, não será capaz de desenlaçar os fios. No entanto, caso tenha efectuado um número par de rotações, então é possível fazê-lo.

Textos

Nível I

Sabe-se que quando um electrão dá uma volta completa em torno de si próprio, a sua relação com o resto do Universo altera-se e também que se der uma segunda volta (idêntica à primeira) a sua relação com o resto do Universo volta a ser igual à original. Na década de 1920, o físico britânico Paul Dirac, a quem se deve uma descrição matemática precisa deste fenómeno, para convencer os seus alunos de que isto é possível, criou (em casa de um colega, o físico dinamarquês Niels Bohr) um modelo com algumas semelhanças com aquele que pode ser visto aqui. A esfera central deve ser pensada como sendo um electrão, ligado ao resto do Universo (ou, se se quiser, à abóboda celeste) pelos três fios. Após fazer-se uma rotação, a relação entre a esfera e o resto da construção muda, pois os fios não podem ser desenlaçados. Mas se forem feitas duas rotações a relação entre a esfera e o resto da construção volta a ser a inicial, uma vez que agora já se podem desenlaçar os fios.

Nível II

É bastante difícil fazer uma demonstração rigorosa de que, após uma única rotação, não é possível desenlaçar os fios; a primeira, da autoria do matemático britânico Max Newman, surgiu apenas em 1942 e baseou-se na teoria matemática dos enlaces, criada quinze anos antes pelo matemático alemão Emil Artin.

Emil Artin estudou a seguinte situação (veja-se a figura 1): duas varas horizontais estão pousadas numa superfície, são paralelas e estão unidas por alguns fios (em todos os exemplos que vão ser vistos há apenas três fios, pois é esta a situação que nos interessa, mas o estudo que Artin fez aplica-se a qualquer número de fios). Além disso, se se seguir um dos fios desde uma das varas até se chegar à outra, o fio, embora podendo dar curvas, vai-se sempre aproximando da segunda vara.

figura 1: Exemplo de enlace

A_BABA_

Um tal enlace pode ser muito complexo mas, como é frequente em Matemática, Artin concluiu que tal complexidade pode ser vista como uma acumulação de elementos simples. Quem examinar a posição dos fios da figura 1 de cima para baixo apercebe-se que ele é assim formado:

  1. o fio mais à esquerda passa por baixo do do meio;
  2. o fio do meio passa por cima do da direita;
  3. o fio mais à esquerda passa por cima do do meio;
  4. o fio do meio passa por cima do da direita;
  5. o fio mais à esquerda passa por baixo do do meio;

Artin considerou então as seguintes posições dos fios:

Posição Nome
A A
B B
A (inv) A−1
B (inv) B−1
1 1

Os nomes dos enlaces (e talvez até mesmo a ideia de chamar «enlace» ao último) poderão parecer estranhos à primeira vista, mas serão explicados mais adiante. Para já, observe-se que a posição dos fios da figura 1 pode ser descrito de uma maneira abreviada por A−1BABA−1. É claro que qualquer posição dos fios pode ser descrita daquela maneira. Assim, a cada posição dos fios corresponde uma sequência de símbolos (cada um dos quais é A, B, A−1, B−1 ou 1) e vice-versa. Daqui para a frente, sempre que se falar em «sequência» tratar-se-á de uma sequência de símbolos como a que foi atrás descrita.

Por vezes acontece que duas posições distintas dos fios descrevem de facto o mesmo enlace. Considere-se, por exemplo:

A A(inv) 1
AA−1 1

Vê-se claramente que em ambos os casos não há de facto qualquer enlace. Escreve-se então AA−1=1. Pelo mesmo motivo, BB−1=1, A−1A=1 e B−1B=1. Mais geralmente, sempre que duas sequências corresponderem a duas posições dos fios que formam o mesmo tipo de enlace, vai-se considerar que as duas sequências são iguais.

Isto ajuda a compreender os nomes dados às posições da tabela acima. Cada sequência pode ser encarada como algo análogo a uma sucessão de números que se está a multiplicar; o elemento 1 é neutro para a multiplicação e o produto de um elemento pelo seu inverso é igual a 1. É preciso no entanto ter cuidado em não levar demasiado longe a analogia pois aqui o produto não é comutativo (AB é diferente de BA, por exemplo; será vista uma demonstração mais à frente).

Sendo assim, o problema de saber se é possível desenlaçar os fios partindo de uma dada posição fica transformado no problema parcialmente algébrico de saber se a sequência correspondente é ou não igual a 1. Escreveu-se «parcialmente» na frase anterior pois, dadas duas sequências, ainda resta o problema de ver se as posições de fios respectivas dão ou não origem ao mesmo tipo de enlace. Para rodear esta necessidade, Artin observou que ABA=BAB, como se pode ver pelas seguintes figuras:

ABA BAB
ABA BAB

Em seguida, Artin demonstrou que qualquer igualdade entre duas sequências resulta de se ter ABA=BAB e das propriedades algébricas atrás descritas (isto é, as igualdades do tipo A−1A=1 juntamento com o facto de o elemento 1 ser neutro). A título de exemplo, volte a ver a figura 1. Claramente, o fio vermelho não está entrelaçado com qualquer dos outros dois e, além disso, o fio azul passa uma única vez por cima do verde e nenhuma por baixo; logo, A−1BABA−1=B. Deduz-se do que foi dito no início do parágrafo que esta igualdade deve poder ser demonstrada de uma maneira algébrica a partir da igualdade ABA=BAB. De facto, assim é, pois

A−1BABA−1=A−1ABAA−1=1B1=B

O que é que tudo isto tem a ver com o problema original da rotação da esfera? Poderá parecer que tem muito pouco a ver, para além de ambas as situações envolverem três fios. Para ver como as duas situações estão fortemente relacionadas, vamos começar por eliminar do problema das esferas tudo o que não for relevante para a sua resolução matemática. Tudo o que interessa de facto é:

Ficamos então reduzidos ao que se vê na figura seguinte:

esquema

Além disso, o facto de os dois discos estarem no mesmo plano é irrelevante. Por isso, pode-se supor que estão na seguinte posição:

cilindro

Agora é fácil relacionar o problema resolvido por Artin com aquele que nos interessa. Basta olhar de lado para a figura anterior e o que se obtém é a posição de fios 1. Uma diferença entre os dois problemas reside no facto de agora ser possível realizar mais movimentos com os fios. Por exemplo, se se pegar no fio vermelho (puxando-o na nossa direcção) e se ele for passado por cima do círculo de cima então (vendo de lado) vê-se:

ABBA

Por outras palavras, tem-se ABBA=1. Em 1942, Max Newman estudou este problema e descobriu que, tal como no problema original estudado por Artin onde tudo decorre de se ter ABA=BAB, nesta versão modificada tudo decorre de se ter ABA=BAB e ABBA=1. Por exemplo, se se passar o fio azul sobre o disco de cima tal como se fez atrás com o vermelho o resultado é

BBAA

ou seja, tem-se BBAA=1. Mas esta igualdade pode ser demonstrada assim:

BBAA=1BBAA=A−1ABBAA=A−11A=A−1A=1

De maneira análoga, pode-se mostrar que BAAB=1.

É fácil ver que dar uma volta de 360° a um dos círculos corresponde a obter-se a posição

ABABAB

O problema consiste então em mostrar que ABABAB não é igual a 1. Já agora, o problema de se mostrar que se pode desenlaçar o resultado do uma rotação de 720° é equivalente à igualdade

ABABABABABAB=1,

que agora é fácil de demonstrar:

ABABABABABAB=BABBABABAABA=B1BA1A=BBAA=1.

Nível III

Conforme foi explicado acima, o problema consiste em considerar o grupo G gerado pelos elementos A e B e pelas relações ABA=BAB e ABBA=1 e mostrar que ABABAB não é igual a 1. Isto pode ser demonstrado do seguinte modo (esta é a demonstração original de Max Newman ligeiramente modificada): considera-se o grupo H dos inteiros módulo 4. Os elementos de H são representados, como habitualmente, por 0, 1, 2 e 3. Sejam a=b=1. Então a+b+a e b+a+b são ambos iguais a 3 e a+b+b+a=0. Logo, existe um homomorfismo f de G em H que envia A em a e B em b. Mas

f(ABABAB)=a+b+a+b+a+b=2 e f(1)=0.

O mesmo tipo de demonstração pode ser usada para mostrar que o grupo G não é comutativo. Basta considerar o grupo H das permutações do conjunto {1,2,3}. Sejam a=(12) e b=(13). Então

aba=bab=(13) e abba=1.

Logo, existe um homomorfismo f de G em H que envia A em a e B em b. Como ab e ba são diferentes (pois ab=(123) e ba=(132)), AB é diferente de BA.

O homomorfismo f descrito acima tem uma interpretação geométrica natural. Por exemplo, se se considerar a posição ABA

permutação ABA

então o fio que começa na primeira posição acaba na terceira e vice-versa, enquanto que o segundo fio começa e acaba na segunda posição. Logo, ABA corresponde à permutação que troca 1 com 3 e mantém 2 fixo, ou seja a (13).

Para terminar, seguem-se algumas observações de tipo histórico:

  1. Foi dito no início que Dirac foi autor de uma teoria matemática do electrão que envolvia o tipo de ideias aqui desenvolvidas. Não se deve pensar que foi a primeira teoria desse tipo; essa deve-se a Wolfgang Pauli. Dirac teve o mérito de relacionar estas ideias com a teoria da relatividade restrita.
  2. Max Neuman afirmou, mas não demonstrou, que para se passar do grupo definido por Artin para o grupo G basta acrescentar a relação ABBA=1. A primeira demonstração deste facto só foi publicada vinte anos mais tarde.
Fotografias
Dirac Bohr Artin Newman
Paul Dirac Niels Bohr Emil Artin Max Newman

Autor: José Carlos de Sousa Oliveira Santos (e-mail: jcsantos@fc.up.pt)