Apologia de um Matemático — G. H. Hardy

A Apologia de um matemático é a tradução para português do livro A mathematician's apology, de Godfrey Harold Hardy (1887–1947), originalmente publicado em 1940. Não é vulgar que se traduzam livros sobre matemática com mais de meio século, mas a opção de o fazer justifica-se plenamente neste caso.

G. H. Hardy foi um matemático notável e muito influente na comunidade matemática britânica do seu tempo. Esta estava, no fim do século XIX, bastante isolada do continente europeu, apesar de ter produzido matemáticos de renome, tais como, por exemplo, Arthur Cayley (1821–1895) ou James Joseph Sylvester (1814–1897). Um evento que mostra até que ponto ia tal isolamento foi o prémio proposto pela Academia das Ciências de Paris em 1881 para a determinação do número de maneiras de representar um número inteiro como soma de cinco quadrados. Acontece que tal problema já fora resolvido em 1867 pelo matemático inglês Henry Smith (1826–1883)! Hardy dedicou-se sobretudo à Análise, que era um ramo da Matemática particularmente pouco cultivado em Cambridge, onde Hardy se licenciou e onde foi professor no início e no fim da sua carreira (foi professor em Oxford de 1919 a 1931). Daí ter escrito um livro de Análise, com o título não ortodoxo A course in Pure Mathematics, num estilo que o seu colega e colaborador J. E. Littlewood (1885–1977) descreveria mais tarde como sendo «como um missionário a falar aos canibais».

Hardy foi um matemático bastante activo e também notavelmente gregário, o que se reflecte no facto de uma grande proporção dos seus artigos ter sido escrita em colaboração. Parte da sua actividade consistiu em tentar elevar o nível da pesquisa matemática no Reino Unido.

A Apologia de um Matemático foi publicada quando a criatividade do seu autor já diminuíra bastante e ele começara a ter problemas de saúde (sofrera uma trombose coronária no ano anterior). Neste livro, Hardy explica aos seus leitores qual é a natureza da matemática e em que é que consiste a actividade de um matemático. Não se trata de maneira nenhuma de uma abordagem sociológica ou histórica destes assuntos; Hardy dá a sua visão pessoal destes tópicos e não o ponto de vista da comunidade matemática do seu tempo ou a evolução histórica de tais pontos de vista.

E qual é a visão pessoal de Hardy? Vejamos alguns aspectos dela. A defesa da matemática pura é talvez o aspecto deste livro que é mais frequentemente referido. Para Hardy, todo o valor de um resultado matemático é interno à própria matemática, ou seja, é independente das suas eventuais aplicações. Ou, nas palavras de Hardy, «[n]ão é possível justificar a vida de qualquer matemático profissional genuíno com base na ‘utilidade’ do seu trabalho». E como se determina o valor de um trabalho matemático? Parte da resposta está contida numa das frases mais citadas do livro:

A beleza é o primeiro teste: não há lugar perene no mundo para matemática feia.

Hardy deixa claro que é bastante difícil quer definir exactamente o que torna um teorema importante quer definir a beleza matemática da citação anterior, mas tenta, através de exemplos concretos, transmitir ao leitor a sua percepção relativa a estes tópicos. Os exemplos (a irracionalidade da raiz quadrada de 2, por exemplo) são escolhidos de maneira a poderem ser compreendidos pelo maior número possível de leitores. Um dos pontos fortes do livro reside precisamente no modo cuidadoso mas também apaixonado como Hardy transmite o valor estético dos teoremas que aborda.

É muitas vezes referida esta visão de Hardy da inutilidade da matemática pura e do baixo apreço que tem pelas suas aplicações. Mas deve-se realçar que Hardy tem esta visão não só da matemática mas, mais geralmente, da actividade científica em geral. Por exemplo, ele escreve:

É […] espantoso verificar o escasso valor prático que o conhecimento científico tem para as pessoas comuns, o carácter enfadonho e banal do que o tem, e como o seu valor parece variar em proporção inversa à da sua suposta utilidade.

E, relativamente ao seu próprio trabalho, afirma:

Nunca fiz nada de «útil». Nenhuma descoberta minha fez, ou é susceptível de vir a fazer, directa ou indirectamente, para o bem ou para o mal, a menor diferença para a amenidade do mundo.

Esta visão da utilidade da ciência, centrada na sua aplicabilidade a questões práticas da vida corrente, é bastante restritiva, para além de ser bastante menos defensável hoje em dia do que no tempo de Hardy. De facto, muitos ramos da ciência que pareciam, antes da Segunda Guerra Mundial, serem exemplos de ciência pura desligada de quaisquer aplicações, têm muitas aplicações hoje em dia. Um exemplo, entre muitos, é a teoria geral de relatividade. Ainda é vista geralmente, mesmo por pessoas cultas e interessadas por assuntos científicos, como sendo algo totalmente desligado da realidade do dia-a-dia. Mas o facto é que o sistema de posicionamento GPS exige, na sua planificação, que se entre em conta com aquela teoria embora, obviamente, o utilizador comum daquele sistema não tenha, nem precise de ter, conhecimento desse facto. Ora, ironicamente, Hardy descreve a relatividade e a mecânica quântica como «disciplinas [que] são presentemente […] quase tão inúteis como a teoria dos números» (acrescentando que «[o] tempo poderá vir a alterar tudo isto») e escreve também que «[a]té hoje ninguém descobriu qualquer propósito bélico que pudesse ser satisfeito por intermédio da teoria dos números ou da relatividade». Mas ainda antes de morte de Hardy o mundo pôde ver que a teoria da relatividade podia servir para propósitos bélicos; as primeiras bombas atómicas explodiram em 1945. A propósito disto, convém notar que Hardy era um pacifista radical e que escreveu este livro em plena Segunda Guerra Mundial, algo que se reflecte em várias passagens.

É interessante contrastar a visão que Hardy tinha da utilidade das suas descobertas com o facto de ter feito uma contribuição para a genética: a lei de Hardy-Winberg, sobre a distribuição de alelos (que são as formas que um mesmo gene pode apresentar) numa população. Tudo indica que ele não a considerava útil. Tal como muitas outras descobertas científicas, não é útil para a vida corrente da generalidade das pessoas, mas é certamente útil para o estudo genético de populações. Além disso, Hardy trabalhou em teoria dos números (é co-autor de um dos livros mais conhecidos sobre esta área, An introduction to the theory of numbers) que, como foi visto acima, Hardy considerava particularmente «inútil». Mas hoje em dia a teoria dos números está na base da criptografia.

Outro aspecto marcante do livro é a melancolia suscitada pelo declínio das capacidades mentais do autor. Isto manifesta-se logo desde o início do livro, quando Hardy declara que a função de um matemático consiste em criar novos teoremas e não em falar daquilo que faz ou do que outros matemáticos têm feito. E explica porque é que o faz:

Escrevo sobre matemática porque, como qualquer matemático que passou a casa dos sessenta, já não disponho da frescura de espírito nem da energia ou paciência para me dedicar efectivamente ao meu verdadeiro trabalho.

É naturalmente discutível se o trabalho de um matemático deve ou não consistir somente (ou principalmente) na criação de teoremas. Certamente que poucos hoje concordarão com Hardy quando este afirma que «[a] exposição, a crítica, a apreciação são obra para espíritos de segunda categoria.» Mas é precisamente pelo facto de ser esta a opinião de Hardy que o texto é particularmente pungente na sua descrição da consciência da perda de capacidades mentais do seu autor.

Um aspecto da actividade de um matemático sobre o qual Hardy discorre é o da colaboração com outros matemáticos. Não poderia deixar de o fazer, pois a sua carreira foi marcada pelas extraordinárias colaborações com Littlewood e com Srinivasa Ramanujan (1887–1920). A primeira é talvez a mais extensa e produtiva da história da matemática, pois começou em 1911 e durou trinta e cinco anos. Nesse período, Hardy e Littlewood dominaram a Análise britânica e escreveram muitas dezenas de artigos e um livro (Inequalities, em colaboração com George Pólya (1887–1985)). Quanto ao relacionamento de Hardy com Ramanujan, este foi descrito por Hardy (no seu livro Ramanujan: Twelve lectures on subjects suggested by his life and work) como tendo sendo o único evento romântico da sua vida. A história é bastante conhecida e, além disso, é descrita com algum detalhe no prefácio do livro, mas será dado aqui um breve resumo. Em 1913, Hardy recebeu uma carta de Ramanujan da Índia (então uma colónia britânica) onde o autor, então um funcionário público de 27 anos, lhe descrevia uma série de resultados matemáticos que obtivera. Seria um génio ou uma fraude? Ao fim de algumas horas, Hardy e Littlewood chegaram a um veredicto: génio! Hardy conseguiu, com dificuldade, fazer com que Ramanujan fosse para Inglaterra no ano seguinte para completar a sua fraca educação formal. Trabalharam juntos durante cinco anos mas, infelizmente, Littlewood teve pouca oportunidade para trabalhar com eles, pois passou grande parte desse período a fazer estudos de balística (foi segundo tenente de artilharia durante a Primeira Guerra Mundial). Ramanujan regressou à Índia em 1919 e faleceu no ano seguinte. O relacionamento entre Hardy e Ramanujan é daqueles de que se poderia dizer que «dava um romance». E deu! Em 2007, o escritor norte-americano David Leavitt (n. 1961) publicou o romance The indian clerk, que consiste no retrato ficcionado do convívio entre os dois e onde surgem personagens como Bertrand Russell (1872–1970), D. H. Lawrence (1885–1930) e Ludwig Wittgenstein (1889–1951).

Estas duas colaborações de Hardy (haveria outras) marcaram decididamente a sua carreira. Na Apologia ele conta que, dos artigos científicos que publicou nos dez primeiros anos da sua carreira, não havia mais de quatro ou cinco de que se conseguia recordar com satisfação e que a associação com Littlewood e Ramanujan foi o evento decisivo da sua vida. E acrescenta:

Ainda hoje digo para mim, quando me sinto deprimido e me vejo forçado a ouvir gente pomposa e maçadora, «Bem, fiz uma coisa que você jamais poderia ter feito: colaborar com Littlewood e Ramanujan de igual para igual».

É usual descrever-se a actividade de um matemático como sendo solitária. Este livro, pelas suas referências à faceta de trabalho colectivo, dá uma visão diferente e complementar do que é fazer pesquisa em matemática.

O prefácio é da autoria do físico e escritor C. P. Snow (1905–1980), que foi colega e amigo de Hardy. O termo «prefácio» é enganador, pois transmite a impressão de ser um texto de tamanho bastante reduzido comparado com o texto de Hardy. De facto, é quase do mesmo tamanho! Snow enriquece bastante o livro ao narrar a vida de Hardy e ao descrever a sua personalidade, para além de, como já foi dito, contar também como foi o relacionamento entre Hardy e Ramanujan. Convém notar que Snow reproduz o erro bastante comum que consiste em dizer que Ramanujan foi o primeiro indiano a ser eleito para a Royal Society. De facto, foi o segundo, tendo o primeiro sido o engenheiro naval Ardaseer Cursetjee (1808–1877), a quem tal honra fora atribuída em 1841, 77 anos antes de Ramanujan! Snow também lastima que o texto de Hardy Bertrand Russell & Trinity, escrito em 1942, «[n]unca foi tornado acessível ao público». Isto era verdade quando o prefácio foi escrito (em 1967), mas o texto acabaria por ser publicado em livro dez anos mais tarde.

A tradutora enriqueceu o livro com algumas notas de rodapé contendo informações relativas a expressões correntes em Cambridge mas pouco conhecidas fora daquele meio, bem como com curtas descrições de pessoas que, sendo bastante conhecidas no Reino Unido quando o livro foi escrito, serão provavelmente desconhecidas da generalidade dos leitores portugueses actuais. Além disso, consegue preservar o estilo elegante da prosa de Hardy. Finalmente, saliente-se que a escolha de Apologia de um matemático para o título em português desta obra, em vez de Justificação de um matemático, que seria uma escolha talvez considerada mais natural por bastantes pessoas, se justifica plenamente por o título ser uma referência clara à Apologia de Sócrates.