Skip to main content.

Estudo do polimorfismo genético da tolerância à lactose em populações humanas

Margarida Reis Sá Coelho

A capacidade de digerir a lactose na idade adulta é uma característica hereditária causada pela persistência da actividade da lactase após desmame, que pode considerar-se um um exemplo de adaptação genética a modificações nos hábitos nutricionais. Recentemente foram identificados dois polimorfismos genéticos, -13.91kbC/T e -22.01kbG/A, fortemente associados à variação na restrição/persistência da lactase, que passaram a constituir um importante instrumento de estudo da capacidade de digestão da lactose nas populações humanas.

Este trabalho é uma contribuição para a compreensão da história natural da persistência da lactase, da sua origem e dos factores que podem ter influenciado a sua actual distribuição geográfica.

O trabalho está dividido em duas partes. Na primeira parte, avaliou-se a concordância entre os diagnósticos obtidos com o teste do hidrogénio expirado (BH2) e os resultados moleculares da genotipagem dos polimorfismos -13.91kbC/T e -22.01kbG/A em 68 indivíduos portugueses. Um nível elevado de concordância (93%) foi observado entre os resultados do teste do BH2 e as classificações baseadas no polimorfismo -13.91kbC/T. Este resultado mostra que a genotipagem do -13.91kbC/T constitui uma alternativa válida aos testes fisiológicos na população portuguesa. Dada a sua relativa simplicidade, não invasividade, e alto nível de automatização, o teste molecular é particularmente apropriado em estudos de larga escala, podendo também ser útil no diagnóstico diferencial de patologias com sintomas abdominais sem as desvantagens associadas à variação inter-individual na resposta fisiológica.

Na segunda parte do trabalho, as distribuições dos polimorfismos -13.91kbC/T e -22.01kbG/A foram estudadas em amostras de Portugal, Itália, ilha de São Tomé, Moçambique e no grupo étnico Fulbe dos Camarões. Procedeu-se também à caracterização dos níveis de diversidade haplotípica associados às linhagens definidas pelos 2 polimorfismos através da análise de 4 microssatélites (D2S3010, D2S3013, D2S3015 e D2S3016). Verificou-se que as prevalências da persistência da lactase calculadas a partir das frequências do alelo -13.91kb*T, que tem maior associação com a característica, variam consideravelmente entre populações. A frequência em Portugal, aqui determinada pela primeira vez, enquadra-se no intervalo de valores anteriormente descritos para o Sul de França e Norte de Espanha. A frequência de 24% da persistência da lactase em Itália é compatível com estudos anteriores baseados em testes fisiológicos. Nas amostras africanas, a população Fulbe, com forte tradição de consumo de leite, apresenta um valor de prevalência da persistência da lactase (38%) claramente superior ao das populações de São Tomé (7,8%) e Moçambique (4,0%), que descendem de sociedades onde a produção e consumo de lacticínios não tem tido uma grande importância nas respectivas economias de subsistência. A frequência do alelo -13.91kb*T revelou-se um bom indicador da prevalência da persistência da lactase nestas populações.

A análise da diversidade dos microssatélites revelou uma redução substancial da diversidade haplotípica associada à mutação 13.91kb*T nas diferentes populações, o que indica que a persistência da lactase é relativamente recente. As estimativas da idade da mutação baseadas na variação dos microssatélites sugerem que o alelo -13.91kb*T se terá originado após a separação entre as populações Africanas e Europeias e situam a idade mínima do alelo no intervalo entre 12500-7500 anos. A utilização de um teste de neutralidade baseado na comparação entre a frequência do alelo -13.91kb*T e os seus níveis observados de diversidade alélica mostrou que este variante é demasiado recente para que as suas frequências actuais possam ter sido atingidas sem favorecimento selectivo. No seu conjunto, a evidência recolhida apoia a hipótese de que o alelo -13.91kb*T surgiu na Eurasia e atingiu a sua distribuição num período de tempo relativamente curto devido à vantagem selectiva conferida pelo uso do leite ao longo de toda a vida.

Estes resultados mostram que mesmo um número limitado de microssatélites oferece resolução suficiente para a reconstrução dos aspectos mais importantes da história evolutiva da persistência da lactase.